Artigo da correspondente da revista CartaCapital em Paris, mostra porque o norte da áfrica e o Oriente Médio vivem momentos de tensão.
Refugiado na Arábia Saudita desde sexta-feira 14, o ex-líder tunisiano Zine El-Abidine Ben Ali, deposto após 23 anos de ditadura, certamente assiste, estarrecido, às recorrentes imagens televisivas de sua Villa saqueada e vandalizada, e da piscina na qual por alguns dias em águas turvas navegou entre escombros um colchão. Outras imagens da Revolução do Jasmim, estas infinitamente mais importantes para o futuro da Tunísia – e com consequências para o mundo árabe muçulmano dominado por tiranos – mostravam na quinta-feira 20, o centro da capital ainda repleto de jovens. Isso a despeito de Ben Ali ter sido deposto.
Os motivos pelos quais esses tunisianos continuam a ocupar as ruas são os mesmos que podem levar jovens em países como Argélia e Jordânia a tomar iniciativas para depor seus líderes: alto nível de desemprego, sobretudo para os jovens, pobreza e a corrupção dos dirigentes. E confiantes com a deposição de Ben Ali, os tunisianos continuam a servir de exemplo: reivindicam mais medidas democráticas do governo interino de unidade nacional.
Em reportagem realizada pela rede de tevê Al-Jazira ficou claro o seguinte: os eventos em Túnis transcendem a região do Magrebe. “Se os regimes árabes muçulmanos não conferirem direitos aos seus povos, terão o mesmo fim do regime tunisiano”, disse uma entrevistada pela rede baseada no Catar. Jovens inspirados pela Revolução do Jasmim, da chamada “geração Facebook”, manifestaram diante das embaixadas da Tunísia no Cairo e em Amã. Um editorialista argelino escreveu sobre “a lição tunisiana”.
Certamente assustado, o governo da Jordânia nesta semana investiu 150 milhões de euros para baixar os preços e criar empregos. Menos generoso, o eterno líder egípcio, Hosni Mubarak, de 82 anos, pediu aos seus ministros para pararem de se manifestar sobre a crise na Tunísia. Truculento, Muammar Kaddafi, desde 1969 no leme da Líbia, declarou antes da fuga de Ben Ali: “Eu não espero que ele fique somente até 2014, mas até o fim de sua vida”. Ben Ali havia dito, no começo da revolta, que não se candidataria ao sexto mandato presidencial.
Após um mês de manifestações iniciadas depois de um jovem diplomado ter se incendiado quando a barraca onde vendia legumes foi confiscada pela polícia, as reivindicações exigidas pelos tunisianos ganharam cada vez mais peso. Pressionado, o governo interino do premier Mohammed Ghannouchi, aliado de Ben Ali durante os últimos dez anos, fez inúmeras concessões. Na quinta 20, a questão-mor a motivar os jovens a dar continuidade às manifestações era a renúncia do governo de unidade nacional de todos os ex-ministros do Rassemblement Constitutionnel Démocratique (RCD), legenda do presidente deposto. Foram nomeados para o governo interino ex-ministros de Ben Ali, inclusive em pastas-chave como as do Exterior, da Defesa e do Interior. Mas membros dos partidos de oposição ditos legais, e até um blogueiro de 33 anos e um dos líderes da revolta, também foram incluídos no governo de transição. Ghannouchi prometeu eleições livres dentro de no máximo seis meses.
De todo modo, quatro ministros da oposição logo pediram demissão por causa da presença no governo de integrantes da agremiação de Ben Ali. Certamente escutaram os gritos da rua, caso contrário por que teriam aceitado seus cargos se cientes da presença de benalistas no governo de transição? Também ouviram as demandas dos jovens o premier Ghannouchi e o presidente interino Fouad Mebazaa, ex-presidente da Câmara dos Deputados, e os ministros com passado benalista. Todos deixaram o RCD. Era compreensível a reivindicação dos manifestantes. O RCD conta com mais de 1 milhão de afiliados, ou seja, um em dez habitantes da Tunísia tem a carteirinha da tentacular agremiação clientelista. Por terem deixado a rede, os ministros do governo de unidade nacional esperavam aplacar a ira dos jovens. Não houve trégua, os manifestantes insistiram nas suas reivindicações por um governo livre dos aliados de Ben Ali.
Simbolismos não escasseiam nessa revolução. De saída, o nome: Revolução do Jasmim em tese pressupõe um levante com intenções pacíficas. Embora não tenha sido, por ora, um banho de sangue, cem pessoas perderam a vida pela causa. O jovem que se incendiou na Tunísia inspirou outros em países como Argélia, Egito e Mauritânia. Políticos a simbolizar continuísmo devem renunciar. Outro símbolo da injustiça do sistema era a corrupção de responsabilidade da segunda mulher de Ben Ali, a ex-cabeleireira Leila Trabelsi, de 53 anos. Segundo um telegrama diplomático enviado pelo embaixador americano na Tunísia e divulgado pelo site WikiLeaks, Trabelsi era a líder de um clã semimafioso, formado por seus dez irmãos, que controlava a economia do país. Um empresário de qualquer setor não poderia fazer um investimento na Tunísia sem molhar as mãos de algum dos integrantes do clã.
Enquanto isso, o povo lutava contra o alto preço das commodities para poder comer. Atualmente em Riad, ao lado do marido, a ex-primeira-dama consola-se com a 1,5 tonelada de lingotes de ouro, ou 54 milhões de euros, que a acompanhou na fuga. A informação é do Le Monde. Detestada pelo povo, Leila é, em boa parte, responsável pela deposição do marido.
Era a seguinte a questão premente no dia 20: o povo se contentaria com a saída dos ex-integrantes do RDC do governo? “Revoluções jamais satisfazem as esperanças de todas as pessoas”, retruca Ali El-Baz, coordenador da Associação de Trabalhadores Magrebinos da França (ATMF) (quadro). O sindicalista de 58 anos nascido na Tunísia, mas residente na França há 35 anos, se diz inquieto. “A situação é instável, e é preciso pensar num governo de transição e de pós-transição.”
El-Baz parece não descartar a presença de “um ou dois” benalistas no governo de transição pelo seguinte motivo: líderes da oposição, mantidos às margens do mundo midiático e político desde a independência da Tunísia da França, em 1956, precisam da experiência governamental dos benalistas. Mas na pós-transição o ideal seria ter somente políticos da oposição sem elos com Ben Ali. Caso contrário, a Revolução teria sido inútil.
Nesse clima tenso, os dirigentes fazem o possível para acalmar os manifestantes. Num discurso televisionado no dia 19, Mebazaa já havia prometido uma ruptura total com o passado. A mídia e o Judiciário ganharam liberdade, e a prioridade seria dar anistia para prisioneiros políticos. Mebazaa falou em uma “revolução pela dignidade e liberdade” do povo.
Justiça, ademais, estava sendo colocada em prática. Se Ben Ali e sua segunda mulher haviam conseguido escapar, outros integrantes do clã mafioso não tiveram a mesma sorte, à exceção de um dos irmãos Trabelsi, que fugiu para Roma, e do poderoso genro Sakher el-Materi que já estava a salvo no Canadá quando começou a Revolução. Um sobrinho de Leila, envolvido no roubo de três iates na França, incluindo o de um banqueiro francês próximo a Nicolas Sarkozy (os iates foram repatriados, mas somente os comparsas na França foram julgados), foi morto por alguém empunhando uma arma branca. Outro Trabelsi chegou a subir a bordo de um avião, mas o piloto, agora herói nacional, recusou-se a decolar.
Mais de 30 integrantes da família de Ben Ali foram pegos no dia 20. Tentavam fugir com joias e ouro e serão julgados por suspeita de crimes contra a Tunísia. Procuradores tunisianos buscam localizar os bens da família Ben Ali no exterior, contas bancárias foram congeladas, inclusive na Suíça, bens da família já foram confiscados também no estrangeiro. Serão julgados os responsáveis pelo massacre de cem manifestantes, em grande parte pela guarda presidencial de Ben Ali. Felizmente, surgiu outro herói, e este decisivo, o chefe do Estado-Maior do Exército, Rachid Ammar, que se recusou a atirar contra a multidão e chegou mesmo a posicionar tanques entre a guarda presidencial e o povo.
Ironicamente, Paris defendeu o tirano até sua fuga. Desde a chegada ao poder de Ben Ali, em 1987, após um golpe de Estado contra seu predecessor, Habib Bourguiba, chamado de “pai da independência”, a França apoiou o ditador. Oriundo de família pobre de 11 filhos, Ben Ali fez carreira militar. Logo se especializou em segurança militar, e em 1980 era embaixador da Tunísia na Polônia. Em 1987, tornou-se primeiro-ministro, cargo que acumulou com o de ministro do Interior.
A vitória na Argélia da Frente Islâmica de Salvação (FIS) no pleito de 1990 assustou a comunidade internacional. Ben Ali eliminou o movimento islâmico no seu país, as potências ocidentais respiraram aliviadas. E após o 11 de Setembro de 2001, Ben Ali se tornou um déspota ainda mais necessário na guerra de George W. Bush.
Para Nicolas Sarkozy e seus antecessores, melhor um déspota laico que um fundamentalista na Tunísia, ex-protetorado francês de 1881 a 1956. Em visita ao país em 2008, Sarko surpreendeu os bem informados ao elogiar o governo por expandir as liberdades. Por sua vez, Dominique Strauss-Kahn, o chefão do FMI, tido como o socialista mais habilitado a derrotar Sarko em 2012, chegou a comentar que a Tunísia era modelo para países emergentes. Nos lances finais do enredo, a chanceler francesa Michèle Alliot-Marie ofereceu a Ben Ali ajuda policial. Sorte in extremis para Sarko: desviou as flechadas lançadas pela mídia para outro alvo, Alliot-Marie.
O presidente agora encoraja a democratização da Tunísia. Após mais de duas décadas sob a ditadura, a oposição foi dizimada e agora tem pela frente um árduo trabalho ao se preparar para as eleições. Moncef Marzouki, ex-presidente da Liga Tunisiana de Direitos do Homem, exilado anos a fio em Paris, será candidato à Presidência. Mas pouca gente o conhece na Tunísia.
Gianni Carta é jornalista, correspondente de CartaCapital em Paris, escreve sobre coisas da vida do Hemisfério Norte.
Um comentário:
Legal seu post, deem também uma olhada no nosso post informal sobre a guerra no Oriente Médio http://nerdwiki.com/2013/11/21/saiu-ar-perdeu-o-lugar-arabes-vs-judeus/
Obrigado.
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